sábado, 30 de novembro de 2013


Eu, escultor de mim


       É bem provável que vocês já tenham ouvido alguém dizer que todos os bebês se parecem entre si, que todos eles têm a mesma “carinha”. E, embora isso não seja de todo verdade, somos obrigados a reconhecer que os bebês só diferem mesmo uns dos outros para seus familiares. E quando crescem, com quem é que se parecem? Com seus pais, certamente. É isso que geralmente estamos pensando quando perscrutamos curiosos o rosto dos filhos de nossos amigos, em busca de um olhar, de um sorriso conhecido e herdado. Ansiamos reconhecer neles as feições pelas quais temos afeto.
     E assim, de “cara de nenê” a “cara do papai”, passamos nossa infância até o limiar da adolescência. O que acontece então? Há uma grande revolução, uma grande ruptura. Nosso corpo começa a modificar-se violentamente e por todos os lados: pelos aparecem nos lugares mais impróprios, nos mais escondidos e até em plena cara. Os suores começam a deixar seu aroma forte e inconfundível, revelando nosso excesso exercícios e medo. Braços e pernas alongam-se desmesuradamente, a voz se modifica, os órgãos sexuais despontam indisfarçadamente e o corpo se insinua.Sim, se insinua no sentido original do verbo: introduzir no seio ou fazer entrar no coração. O corpo se delíneia, como uma paisagem que emerge do projeto de um pintor. [...]
     Podemos dizer que nosso corpo sai do anonimato em que sempre esteve e começa a adquirir um perfil, no qual certamente reconhecemos heranças, mas que também começa a revelar particularidades. É um jeito especial de andar, é uma risada mais espontânea e aberta, é um bumbum que arrebita, é um peito que se alarga como de remador. E se é verdade que às vezes as pernas são mais grossas do que desejá- vamos ou o nariz parece que não vai mais parar de crescer, é inegável também que o nosso corpo vai ficando, finalmente, cada vez mais parecido com nós mesmos.
     As surpresas se sucedem: os músculos se tornam mais fortes, as pernas começa a ficar torneadas, impossível não reparar. A presença do corpo se torna tão intensa que nos espantamos atè mesmo quando, casualmente, passamos diante de um espelho ou de uma vidraça. A nova imagem surpreende: é ao mesmo tempo tão nova e tão nossa.
     E por mais que queiramos disfarçar, sob roupa larga e uma postura meio desleixada, é esse corpo que chama a atenção de todos, constante assunto de rodinhas e de comentários dos tios. “Como ela cresceu!”, “Nossa, já de barba”, “ela já mestruou, asseguro!
     E assim esse corpo vai assumindo cada vez mais importância, como fonte de prazer, de transformação e de identidade. Começamos por ele a nos tornar nós mesmos, a termos feições e trejeitos. Fazemos dele, então, nossa forma de expressão – não só porque ele nos parece tão plástico, tão flexível, como por centro de tanta atenção. Assim, exageramos na risada, na cabeça erguida, no requebro.
     E logo percebemos que podemos tomar partido desse corpo ainda em formação, podemos modelá-lo, exibi-lo, realçá-lo. Podemos expressar nossas emoções e nossas idéias, criar um tipo, nos individualizar. Tatuagens, malhação, brincos, dietas, máscaras fazem parte desse trabalho de escultor a que se dedica todo adolescente.
     Passamos horas tentando entendê-lo, controlá-lo, explorá-lo. Procuramos conhecer seus defeitos e suas manhas, de maneira a torná-lo nosso grande aliado. E esse corpo se torna nossa passagem secreta para o mundo adulto: ele nos diferencia nos abre espaço, nos fazem vistos e notados e até desajeitados. É ele que atesta, contra qualquer disposição em contrário, à distância que já existe entre nós e a infância que ficou para trás. E nessa vida nova, na qual penetramos sem passado, sem história, sem sucesso, sem currículo, é sem dúvida nenhuma essa nossa imagem, essa nossa presença que podemos exibir ao mundo.
     Só mais tarde, quando já tivermos amadurecido por dentro e por fora, quando tivermos conquistado outras formas de expressão e identidade em que pudermos exibir outras particularidades que nos distingue, esse corpo passará a ter menor importância. Não deixará nunca, entretanto, de ser o texto no qual se inscreve a nossa história e a forma na qual se insinua a nossa individualidade.


     (Cristina Costa)