Eu, escultor de mim
É bem provável que vocês já tenham ouvido alguém dizer que todos os bebês se
parecem entre si, que todos eles têm a mesma “carinha”. E, embora isso não seja
de todo verdade, somos obrigados a reconhecer que os bebês só diferem mesmo uns
dos outros para seus familiares. E quando crescem, com quem é que se parecem?
Com seus pais, certamente. É isso que geralmente estamos pensando quando
perscrutamos curiosos o rosto dos filhos de nossos amigos, em busca de um
olhar, de um sorriso conhecido e herdado. Ansiamos reconhecer neles as feições
pelas quais temos afeto.
E assim, de “cara de nenê” a “cara do papai”, passamos nossa infância até o
limiar da adolescência. O que acontece então? Há uma grande revolução, uma
grande ruptura. Nosso corpo começa a modificar-se violentamente e por todos os
lados: pelos aparecem nos lugares mais impróprios, nos mais escondidos e até em
plena cara. Os suores começam a deixar seu aroma forte e inconfundível,
revelando nosso excesso exercícios e medo. Braços e pernas alongam-se
desmesuradamente, a voz se modifica, os órgãos sexuais despontam indisfarçadamente
e o corpo se insinua.Sim, se insinua no sentido original do verbo: introduzir
no seio ou fazer entrar no coração. O corpo se delíneia, como uma paisagem que
emerge do projeto de um pintor. [...]
Podemos dizer que nosso corpo sai do anonimato em que sempre esteve e começa a
adquirir um perfil, no qual certamente reconhecemos heranças, mas que também
começa a revelar particularidades. É um jeito especial de andar, é uma risada
mais espontânea e aberta, é um bumbum que arrebita, é um peito que se alarga
como de remador. E se é verdade que às vezes as pernas são mais grossas do que
desejá- vamos ou o nariz parece que não vai mais parar de crescer, é inegável
também que o nosso corpo vai ficando, finalmente, cada vez mais parecido com
nós mesmos.
As surpresas se sucedem: os músculos se tornam mais fortes, as pernas começa a
ficar torneadas, impossível não reparar. A presença do corpo se torna tão
intensa que nos espantamos atè mesmo quando, casualmente, passamos diante de um
espelho ou de uma vidraça. A nova imagem surpreende: é ao mesmo tempo tão nova
e tão nossa.
E por mais que queiramos disfarçar, sob roupa larga e uma postura meio desleixada,
é esse corpo que chama a atenção de todos, constante assunto de rodinhas e de
comentários dos tios. “Como ela cresceu!”, “Nossa, já de barba”, “ela já
mestruou, asseguro!
E assim esse corpo vai assumindo cada vez mais importância, como fonte de
prazer, de transformação e de identidade. Começamos por ele a nos tornar nós
mesmos, a termos feições e trejeitos. Fazemos dele, então, nossa forma de
expressão – não só porque ele nos parece tão plástico, tão flexível, como por
centro de tanta atenção. Assim, exageramos na risada, na cabeça erguida, no
requebro.
E logo percebemos que podemos tomar partido desse corpo ainda em formação,
podemos modelá-lo, exibi-lo, realçá-lo. Podemos expressar nossas emoções e
nossas idéias, criar um tipo, nos individualizar. Tatuagens, malhação, brincos,
dietas, máscaras fazem parte desse trabalho de escultor a que se dedica todo
adolescente.
Passamos horas tentando entendê-lo, controlá-lo, explorá-lo. Procuramos
conhecer seus defeitos e suas manhas, de maneira a torná-lo nosso grande
aliado. E esse corpo se torna nossa passagem secreta para o mundo adulto: ele
nos diferencia nos abre espaço, nos fazem vistos e notados e até desajeitados.
É ele que atesta, contra qualquer disposição em contrário, à distância que já
existe entre nós e a infância que ficou para trás. E nessa vida nova, na qual
penetramos sem passado, sem história, sem sucesso, sem currículo, é sem dúvida
nenhuma essa nossa imagem, essa nossa presença que podemos exibir ao mundo.
Só mais tarde, quando já tivermos amadurecido por dentro e por fora, quando
tivermos conquistado outras formas de expressão e identidade em que pudermos
exibir outras particularidades que nos distingue, esse corpo passará a ter
menor importância. Não deixará nunca, entretanto, de ser o texto no qual se
inscreve a nossa história e a forma na qual se insinua a nossa individualidade.
(Cristina Costa)
2 comentários:
Obrigado! Sou professor e precisei desse texto para uma atividade especial. Fiquei feliz em encontrar em seu blog.
Abço!
Cléber
linda a página de seu blog. mto obrigada pelo auxilio. precisei do texto e encontrei-o aqui nesta pág. graciosa :)
Geise Dias
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